Eu, o Mausoléu de Lenin e a blasfêmia do decálogo.


       No final de 2013 estudando para o mestrado conheci Mikhail Bakhtin, filósofo da linguagem russo e marxista, que já teve sua participação aqui nesse blog: (http://redmosquito-neto.blogspot.com.br/2014/04/circulo-do-bakhtin-capitulo-ii-o.html http://redmosquito-neto.blogspot.com.br/2013/03/da-serie-circulo-do-bakhtin-capitulo-i.html) e esse filósofo da década de 20 abriu minha cabeça e mudou minha maneira de me relacionar comigo mesmo e com o mundo. Em Filosofia da linguagem e marxismo, Bakhtin em certo trecho fala sobre a visão de mundo - cada linguagem adquirida dá ao cérebro uma nova capacidade de enxergar e de se relacionar com o mundo. Inspirado por essa frase, deprimido e querendo encontrar qualquer terapia ocupacional, vi umas palavras estranhas no livro e resolvi decifrá-las: decidi estudar língua russa, que era algo absolutamente diferente de tudo que eu conhecia e que supostamente viria a me dar uma visão de mundo completamente nova. 
         Entrei no mestrado em Educação e mudei minha opção de orientador, não era mais o saudoso professor Murilo Leal, especialista em Mikhail Bakhtin, mas sim a professora Priscila Fernandes. A linha de pesquisa era outra, os filósofos que nos guiaram outros. Mas mesmo assim, meio secretamente eu continuava estudando. Vez ou outra deixava escapar e contava para minha orientadora, que me apoiava, mas era uma coisa minha completamente maluca e paralela. E quem estuda linguística sabe disso melhor que eu: a linguagem é o princípio fundamental que se desdobra em pensamento e se desdobra em cultura, ideologias, arquiteturas, etc. E minha viagem desde o início foi completamente orientada pela questão da linguagem. Eu nem sabia muito sobre política, nem mesmo sobre a Rússia. No meio do caminho quando deixava escapar uma coisa ou outra, fui acusado de ser um bitolado por ideologia de ultra-esquerda (oi?), fui alertado para "tomar cuidado pois estava indo fundo demais na questão política" (oi?), fui alertado para tirar a barba para não parecer terrorista e ser cauteloso por causa da cor da minha pele, apenas parda, nada preta... (e hoje posso seguramente dizer... oi?).  Essas precauções e "conselhos (soviets rs)" que ouvi já dão um indício do tom que quero dar a esse texto:o da demonização que nós americanos damos à Rússia, aos demais países da ex-URSS e a qualquer país que tenha princípios socialistas/comunistas. 
          Não devo satisfação, mas para esclarecer: Eu não fiquei rico porque consegui passar umas férias na Rússia. Foi um lance de sorte mesmo e muita, mas muita pesquisa. Juntei uma grana durante cinco anos, e revirei todos os recantos da internet, treinando a linguagem, perguntando, investigando, farejando os lugares, épocas, situações mais seguros e baratos. 
            Mas quero aqui nesse primeiro relato focar no encontro com o camarada Vladimir Lenin. 
        É uma figura histórica, controversa. Difícil falar a respeito não tendo muito conhecimento de causa. No fundo da minha memória existem algumas aulas de História, professores empolgados falando sobre a Revolução de 1917, apresentando as figuras dos bolcheviques e tal... Depois disso meio que passei em branco por essas figuras históricas. A Biologia é meio isentona de história, sociologia, filosofia - e consequentemente política - assim como vários outros cursos superiores, o que em partes explica essa insanidade que estamos vivendo no Brasil, que é uma mistura de ignorância com criatividade em que as pessoas pedem volta da ditadura militar e inventam mil "causos" distorcendo os fatos históricos para caber nas ideias que querem defender -  geralmente ideias neoliberais e introduzidas no inconsciente.
            Em 1924 o corpo de Vladimir Lenin foi embalsamado, a mando de Josef Stalin e está guardado em um mausoléu em plena praça vermelha, ao lado da Catedral de São Cristóvão e do palácio do governo Putin.  E eis que estava eu lá, em 2018 em plena Krasnaya Ploschad (Praça Vermelha) pulando igual um macaco selvagem, babando de queixo caído olhando aquelas construções colossais. A praça é imensa e estava um dia ensolarado, com muitas pessoas de todas as nacionalidades, crianças, idosos, muitos turistas. Eu fiz questão de tirar uma foto fazendo um asana do yoga, uma invertida sobre os ombros, em frente à Catedral do Kremlim, pois foi uma maneira que encontrei de dizer - Ei, tá tudo bem aqui na Rússia, não tem que ter medo! Então depois de explorar toda a praça vermelha, tentei entrar no mausoléu. É aberto à visitação, entrada gratuita. Mas aí depois de gastar meu russo conversando com os guardinhas, descobri que tinha chegado no último minuto que era aberto para a visitação


Invertida sobre os ombros 



                                                          Catedral de São Basílio


                           Bogachan caminhando em direção ao Mausoléu e ao Palácio do Governo



          Eu queria muito ver o corpo de Lenin. A visitação reabriria dali a dois dias e então voltei lá. Fui a pé do hostel onde eu estava e acompanhado de um amigo turco, Bogachan, que fiz lá em Moscou. A gente trocava idéias em inglês, e nesse dia conversamos bastante sobre política. O Bogachan abriu meu olho para uma questão: a ascensão de uma direita ultra-conservadora e burra está acontecendo no mundo inteiro. Um ditador foi eleito na Turquia, pela mídia e pela camada burguesa da população e agora os professores de Biologia podem inclusive ser presos, se se atreverem a ensinar Teoria da Evolução. Tivemos essa conversa enquanto esperávamos na fila do mausoléu. Chegou nossa vez de entrar, passamos pela revista dos guardas, eles pedem pra abrir as bolsas e passam uns scanners pra ver se detectam explosivos. Mas os guardinhas são bem simpáticos com turistas, foi bem tranquilo pra entrar nesse lugar.

         O Mausoléu é uma caixa quadrada de mármore, e logo atrás dele estão enterrados os generais soviéticos que venceram Hitler na segunda guerra. A visitação é rápida, não dura mais de três minutos e não pode ser fotografada. É uma cripta, escura e tem uma luz vermelha lá dentro. Ele parece uma Branca de Neve, mas mais emocionante. Está deitado na cripta com uma iluminação vermelha sobre ele, está vestido com uma roupa de cetim preta com detalhes bordados em vermelho. Existem boatos de que em algum momento o corpo foi substituído por um boneco de cera, mas se foi, é o boneco de cera mais bem feito do mundo. A experiência me arrepiou cada pelo do corpo. Ele era baixinho, está com uma mão fechada e outra indicando alguma coisa, como se estivesse apontando. Seu semblante é sereno. As unhas estão bem amareladas e a barba tem uma textura rota, de coisa velha... Eu me debrucei sobre o mármore e fiquei parado olhando, meditando, pensando em tudo que ele representa. Fiquei olhando cada detalhe das rugas do rosto, do tamanho reduzido de um líder que se fez tão gigante... até que o guarda veio me cutucar e mandou eu sair de lá.
          Saí mudo, olhos arregalados, pensativo. Só conseguia pensar no Lula preso aqui no Brasil. Uma estranha sensação de vergonha. Enquanto um povo honra e guarda com orgulho a memória do líder revolucionário que erradicou o analfabetismo no país e tirou o povo pobre da miséria (há muitas controvérsias, inclusive penso na derrubada das estátuas de Lenin na Ucrânia... pelo que consigo entender de tudo que estudei e que presenciei nessa visita à Russia, Lenin em si era um filósofo, era pacifista mas aceitava as ações radicais e o que vem depois dele é que se torna extremo...).
         
        A esquerda os fundos do Mausoléu e a galeria de túmulos dos generais que venceram Hitler


Túmulos dos generais que venceram Hitler.



Bogachan, Mausoléu e os generais.


Eu e meu tio Stalin (não mexa comigo!)


Trocando ideia com Josef Stalin


   Túmulos e o Mausoléu

Josef Stalin


Catedral de São Basílio



Palácio do Governo Russo (não, o Putin não fica dentro da catedral)


.Torre da Catedral de São Cristóvão, com o maior relógio de torres de catedrais do mundo

           Dois dias depois peguei um trem e fui em São Pettersburgo. Outra cidade incrível por tudo que representa e por tudo que é. Meu primeiro contato com neve e o rio Neva semi-congelado nunca vai sair da minha cabeça. Contato com um outro bioma foi uma satisfação incrível pro meu eu biólogo. Em Pett, me senti um bolchevique enquanto visitava o Palácio de Inverno, palco dos acontecimentos cruciais da Revolução Russa. Eu tinha visitado o Palácio só por fora, mas então me disseram que era imperdível conhecê-lo por dentro. Eu precisava pegar o trem de volta, do outro lado da cidade. E resolvi visitar o palácio por dentro, mas só teria uma hora para fazer isso. Enquanto lia um panfleto sobre o palácio dizendo que os revolucionários bolcheviques tiveram que correr por toda São Pettersburgo (Leningrado), momentos antes da Revolução ser deflagrada, eu corria por toda São Pettersburgo para não prender o trem (e a Revolução de 17 e o Brasil de 2018 na minha cabeça...). Chegando no Hermitage (o nome do museu que hoje fica no Palácio de Inverno) vi o navio Aurora, de onde foi disparada uma bala de canhão para ameaçar o palácio e também para alertar os companheiros de que a ocupação do palácio deveria começar. https://mundoestranho.abril.com.br/historia/como-foi-o-cerco-ao-palacio-de-inverno-durante-a-revolucao-russa/
               Foi emocionante. O espírito bolchevique pulsa ali. A inspiração revolucionária me tomou por completo. 
Sapsan -High Speed Train  - (Moscow-Saint-Pettersburg-Moscow) É relativamente barato!
E uma passagem de avião nesse trecho custa em torno de mil rublos, uns 50- 60reais!

Interior do Hermitage/Palácio de Inverno - Apetrechos das Dinastias

Uma das inúmeras salas do labirinto Hermitage - o chão tem trabalhos maravilhosos em machetaria todos do século XVI

Tapeçaria e artefatos das dinastias

Portais


Corredor de tapeçarias reais



Sala onde os Romanov ficaram presos nos momentos finais de deflagração da Revolução. Reza a lenda que esse relógio parou no momento em que foram rendidos e está lá marcando a mesma hora até hoje.

Ante-salas do Palácio de Inverno/Hermitage

Ante-sala simplesinha do palácio

Galeria de pinturas dos membros das dinastias. O filme Arca Russa de Sokorov foi gravado por esses corredores.

Era um hall de entrada no palácio. (Modesto)

Pátio interno do Palácio de Inverno /Hermitage

Rio Neva com espetaculares placas de gelo (eu queria comê-las!)

Réplica do Navio Aurora (hoje é um restaurante temático)

Fundos do palácio de Inverno. Era a partir desse ângulo que o navio Aurora ameaçava destruir o palácio com uma bala de canhão, na noite de 25 de outubro de 1917

Réplica do Aurora.

Essa embarcação leva a galera pelo Neva, para observar as luzes da cidade e as pontes que se abrem

Janelas maravilhosas

Prédio do Estado Maior, em frente ao Palácio de Inverno

Palácio de Inverno /Hermitage Museu
           
       As férias acabam e volto para casa. Muitas histórias, lembranças boas, coisas para partilhar. Vou soltando aos poucos. De volta ao trabalho, quieto no meu laboratório onde auxilio os estudantes com impressões, me aparecem dois estudantes de economia para imprimir um texto. O professor deles deu algum texto de Lenin para trabalharem. Desconfiado, o estudante disse que o professor estava meio louco e que ele não gostava desse tal Lenin. Perguntei por que. Ele me respondeu que não gostava porque foi um ditador, um governante mão de ferro e também por causa do decálogo. Decálogo de Lenin. Decálogo de Lenin?
           Disse pro garoto que nunca tinha ouvido falar disso e ele me responde com um ar muito sério, muito preocupado, dizendo que é uma carta de princípios dos governos comunistas, com o passo a passo de como dominarem e executarem uma população. Fiquei curioso pois achei estranha a conversa, fui investigar. Decálogo de Lenin nunca foi escrito por Lenin. É uma bobagem, uma mentira (dentre milhões de mentiras inventadas para demonizar a Rússia), inventada por alguém dessa nossa Direita burra fascistoide. Sem pé nem cabeça, o texto fala coisas como 'promover liberdade sexual entre jovens', ' incitar pânico na população', 'dominar os meios de comunicação', 'promover inflação'... Muitas bobagens escritas por alguém que na verdade quer esse projeto de governo. Predador. Mas o que me assusta também não é nem o décalogo, nem a mentira por trás dele. Mas um jovem estudante universitário de um curso estratégico como Economia, reproduzindo uma bobagem dessas, sem sequer se preocupar em verificar se a informação é verdadeira ou não. 
        Isso é um rumo muito perigoso que o Brasil está tomando. Leis baseadas em boatos. Profissionais que não sabem pensar por conta própria e que acreditam nessa doutrinação. Isso sim é doutrinação, a mídia hegemônica veiculando desinformação pra todo lado. E as pessoas levando a sério: ele até me fez uma indicação "bibliográfica" : Leia o decálogo e você vai ver como ele era ruim!, o garoto me disse. 
          Só o fato de ter praticamente erradicado o analfabetismo de um país com o tamanho da Rússia, já dá uma pista de quem foi Vladimir Lenin. Só o fato do maior líder popular brasileiro, cujos governos foram os que mais investiram em educação pública, estar preso por causas políticas, sem provas definitivas, já nos dá uma pista do rumo que estamos tomando enquanto nação e das forças obscuras que estamos enfrentando.
       A verdadeira bibliografia de Lenin é disponibilizada gratuitamente no site Domínio Público. Não custa nada a gente se esforçar um pouco e buscar mais proximidade com a verdade antes de reproduzir boatos. Esses boatos derrubaram uma presidente honesta. Esses boatos viram projetos de lei (ensino de criacionismo na escola, cura gay, etc..). 

Busquemos a verdade pois ela liberta.
Da Svidania tovarish!


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